No dia 03.07.2020, a rádio CBN, em parceria com a Secretaria Nacional do Consumidor, divulgou levantamento que aponta acentuado aumento de reclamações de consumidores durante o período da pandemia da COVID-19.
Segundo os dados colhidos por meio do Portal do Consumidor, os meses de março, abril e maio registraram uma alta de 69% no número de reclamações, com previsível liderança do setor aéreo (alta de 200%), seguida do destaque negativo para bancos e administradoras de cartões (144% no aumento de reclamações).
A reportagem cita o caso de um cliente que teve o cartão de crédito clonado. Após 30 (trinta) dias de solicitações de uma segunda via do cartão – registrada em 8 protocolos de atendimento – o problema ainda não foi solucionado: “Fica o sentimento de estar de mãos atadas.”
Embora a COVID-19, de fato, tenha alterado a dinâmica de algumas relações, decerto não se pode conferir carta branca à pandemia para justificar toda e qualquer falha de serviço; notadamente (i) em setores não atingidos diretamente pelas medidas de controle à pandemia; e (ii) em casos nos quais a negligência para com o consumidor extrapola qualquer critério de razoabilidade.
É nesse cenário que merece destaque a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, segundo a qual a indevida obstrução do tempo caracteriza dano moral passível de indenização.
A nomenclatura conferida à Teoria é, por si, bastante elucidativa. “Desvio Produtivo” remete à obstrução do tempo do consumidor que, podendo empregá-lo em atividades da sua escolha (trabalho; estudos; lazer; etc.), vê-se forçado a abrir mão de seu tempo livre para buscar a solução de problema causado pela própria empresa prestadora do serviço:
“o consumidor, impelido por seu estado de carência e por sua condição de vulnerabilidade, despende então uma parcela do seu tempo, adia ou suprime algumas de suas atividades planejadas ou desejadas, desvia as suas competências dessas atividades e, muitas vezes, assume deveres operacionais e custos materiais que não são seus.” (DESSAUNE, 2019, fl. 23)
Ora, se o cliente cumpriu a sua obrigação (pagamento) mas a empresa lhe prestou um mal serviço, é incoerente que o ônus da resolução do problema recaia, precisamente, sobre o consumidor já lesado pelo serviço defeituoso.
A aplicação da Teoria possibilita, assim, a justa readequação da relação de consumo. A via crucis enfrentada pelo consumidor, na tentativa de solucionar problemas causados pelo próprio prestador de serviços, deixa de ser interpretada como “mero dissabor ou aborrecimento”. Agora, os percalços sofridos ensejam a condenação da empresa negligente em indenizar o consumidor pelo estresse e, principalmente, pela rotina obstruída na busca por reparação dos defeitos.
Contrariamente ao sugerido pelo título de “Teoria”, a indenização por danos morais em razão do Desvio Produtivo do consumidor é amplamente recepcionada pelos Tribunais do país. Abaixo, a título ilustrativo, seguem julgados do TJDFT que aplicam a tese em casos relacionados a serviços defeituosos prestados por (i) instituições financeiras; (ii) instituições de ensino superior; (iii) operadoras de telefonia; e (iv) concessionárias de veículos:
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CONSUMIDOR. BANCO. PRELIMINAR DE NULIDADE ABSOLUTA POR JULGAMENTO ULTRA PETITA REJEITADA. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INSCRIÇÃO INDEVIDA. CONDUTA DESIDIOSA DO BANCO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO CONHECIDO. PRELIMINAR REJEITADA. PROVIDO. (...)
11. Outrossim, para além do desiquilíbrio financeiro e inscrição indevida em cadastros de inadimplência (dano moral in re ipsa), no caso concreto, o dano extrapatrimonial decorre do esforço e da desnecessária perda de tempo útil empregado para o reconhecimento dos direitos da demandante, o qual não obteve fácil solução dos seus reclames (Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor). 12. A conduta desidiosa do fornecedor de serviços em dar solução à questão, a tempo e modo condizente com suas possibilidades, mesmo após diversas tentativas de solucionar o problema (PROCON e Reclamação no Banco Central - ID Nº 14848075), denota situação de desgaste que extrapola o limite do mero dissabor e atinge a esfera pessoal, motivo pelo qual subsidia reparação por dano moral. 13. Na seara da fixação do valor da reparação devida, considerando as circunstâncias da lide, a condição socioeconômica das partes, a natureza da ofensa e as peculiaridades do caso sob exame, razoável e proporcional a condenação do banco réu no pagamento de R$ 3.000,00 (três mil reais), a título de reparação, valor que ora se adapta aos precedentes desta Turma Recursal. (...)
(TJ-DF 0733568-82.2019.8.07.0016, Relator: CARLOS ALBERTO MARTINS FILHO, Data de Julgamento: 25/05/2020, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 09/06/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada).
CONSUMIDOR. CONCLUSÃO DE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO - DEMORA EXCESSIVA NA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA - MÁ PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - DANOS MATERIAIS E MORAIS CONFIGURADOS. VALOR - MANTIDO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. (...)
8. Diante da verdadeira via crucis enfrentada pelo autor para resolver a questão, tem lugar a reparação por indenização imaterial pretendida. Nesse sentido tem ganhado corpo entre tribunais pátrios, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, a aplicação da denominada Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor?[1], que reputa indenizável a perda do tempo livre do consumidor. Por esta teoria, aquelas situações intoleráveis que denotam verdadeiro desrespeito aos consumidores que precisam perder seu tempo livre para solucionar problemas a que não deu causa, e que os fornecedores de produtos e serviços tem a obrigação de não causar, ou causando, resolvê-los prontamente, são hábeis a ensejar a reparação por danos morais. Modernamente, é inegável que o tempo é um bem relevante, e que situações como a dos autos, em que o consumidor é obrigado a desviar o tempo destinado ao trabalho, família ou lazer para a solução de problemas de consumo causado pelo próprio fabricante, ensejam reparação pela perda do seu tempo livre. Nesse sentido, recente decisão proferida no AREsp 1260458, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze e publicado no DJE em 25/04/18. O valor de R$ 2.000,00 atende prontamente os critérios de razoabilidade e proporcionalidade. (...)
(TJ-DF 07284956620188070016 DF 0728495-66.2018.8.07.0016, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 04/12/2018, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 11/12/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
CONSUMIDOR. BLOQUEIO DE LINHA TELEFÔNICA. FRAUDE. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PREJUÍZOS EFETIVOS TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. VALOR ADEQUADO E PROPORCIONAL. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. (...).
4. Diante da verdadeira via crucis enfrentada pela autora para resolver a questão, tem lugar a reparação por indenização imaterial pretendida. Nesse sentido tem ganhado corpo entre tribunais pátrios, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, a aplicação da denominada. Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor.[1], que reputa indenizável a perda do tempo livre do consumidor. Por esta teoria, aquelas situações intoleráveis que denotam verdadeiro desrespeito aos consumidores que precisam perder seu tempo livre para solucionar problemas a que não deu causa, e que os fornecedores de produtos e serviços tem a obrigação de não causar, ou causando, resolvê-los prontamente, são hábeis a ensejar a reparação por danos morais.
(...)
(TJ-DF 07055620220188070016 DF 0705562-02.2018.8.07.0016, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 27/06/2018, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 06/07/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada)
DIREITO CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. VEÍCULO DEFEITUOSO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE MONTADORA E CONCESSIONÁRIA. IDAS FREQUENTES A CONCESSIONÁRIA PARA SOLUÇÃO DE PROBLEMAS MECÂNICOS. PRAZO PARA SANAR VÍCIOS DE PRODUTOS DEFEITUOSOS. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. (...)
6 - Nesse contexto, considerando que o automóvel se transformou em instrumento de trabalho, e o consumidor paga preço razoável pelo conforto agregado, os defeitos que exigem frequência exagerada de idas ao concessionário para reparos, resultando em desvio produtivo, com longo período de privação do bem, rendem abalo emocional no consumidor, os quais reclamam compensação. (...)
(TJ-DF 07054497020178070020 DF 0705449-70.2017.8.07.0020, Relator: LEILA ARLANCH, Data de Julgamento: 13/11/2019, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 21/11/2019 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Assinala-se, ainda, que a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor atende à tríplice função da fixação de indenizações por danos morais, qual seja, (i) reparatória, em relação ao consumidor lesado; (ii) punitiva, face à desídia do prestador de serviços; e, notadamente, (iii) preventiva, alertando-se os demais players do mercado acerca das consequências financeiras da indevida penitência infligida a seus clientes.
Os dados revelados pela CBN expõem uma realidade vivenciada desde muito antes da pandemia. Todos podem se recordar das horas ou dias perdidos em meio a (i) chamadas telefônicas; (ii) filas de atendimento; e (iii) idas e vindas a empresas; nas quais compromissos pessoais, familiares e profissionais foram deixados de lado na tentativa de solucionar o defeito de um produto/serviço do qual foram, em primeiro lugar, vítimas. Nesse cenário de indevido descaso com o tempo e afazeres pessoais, o conhecimento acerca da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor possibilita, enfim, a efetiva prevenção e reparação de danos prevista como direito básico do consumidor (art. 6º, VI, do CDC).