Sei que é chato, mas é muito importante ler o contrato de financiamentos de carros ou outros bens. O mais provável é que eles sejam contratos de alienação fiduciária, que a garantia mais forte do nosso ordenamento jurídico brasileiro - e pode trazer sérias consequências caso não seja atendida.
E aí, olhou o contrato e constatou que de fato é uma alienação fiduciária? Em caso positivo, devo te informar que em termos jurídicos, você não é proprietário pleno deste carro.
Sabe quem é o proprietário? O banco! Surpreso? Chega mais.
Financiamento de carro, alienação fiduciária e direitos reais
Primeiro de tudo, você precisa saber um pouco sobre o conceito de “direito real” para o ordenamento jurídico brasileiro. Direito real, nas palavras de um grande doutrinador do Direito, Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça (1915, p. 93), é “um poder que a sociedade reconhece no titular sobre uma coisa do mundo externo”.
Gosto de exemplos para deixar os conceitos abstratos do direito mais tangíveis. A definição que você leu no parágrafo anterior pode ser visualizada mais facilmente quando você pensa em sua escova de dente. Você é o proprietário pleno da sua escova de dente, de modo que você pode exercer seus direitos nela da forma que bem entender, pode levar ela para onde quiser, utilizá-la para escovar os dentes ou lavar vasilhas, sempre baseando-se apenas em sua vontade. Esta propriedade não será questionada pelos demais moradores de sua casa, posto que eles reconhecem o direito real que você possui sobre sua escova.
Modalidades de propriedade
Agora que você entendeu a noção geral de direito real usando a propriedade como exemplo (destaco que existem outros direitos reais além da propriedade, mas não são relevantes para o escopo deste pequeno texto), é importante saber que existem duas modalidades de propriedade no nosso ordenamento jurídico:
- Propriedade plena; e
- Propriedade resolúvel.
Via de regra, toda propriedade é presumida plena, com fulcro no art. 1.231 do Código Civil. Esta espécie de propriedade é a que estamos acostumados quando falamos de propriedade em nosso dia a dia. É o caso da sua escova de dente.
Por outro lado, a propriedade resolúvel é um conceito mais abstrato e bem específico, que representa a exceção à propriedade plena. Nesta modalidade, estamos diante de uma propriedade revogável, que só existe até a ocorrência de determinada condição resolutiva pactuada pelas partes.
A propriedade resolúvel
Do último parágrafo, extraímos algumas noções importantes sobre a propriedade resolúvel:
- Ela existe por tempo limitado;
- Ela tem uma finalidade específica; e
- Ela nasce em virtude de um acordo de vontade.
Agora você deve estar se questionando: “O que isso tem a ver com meu carro?”. A resposta: tudo. Vem comigo que as coisas vão ficar mais claras.
Existe uma espécie de propriedade resolúvel muito interessante, chamada “propriedade fiduciária”, que ocorre nos contratos de alienação fiduciária em garantia. Nestas modalidades contratuais, o fiduciário passa a ser dono dos bens alienados pelo fiduciante, ou seja, adquire a propriedade desses bens, mas, como no próprio título de constituição desse direito está estabelecida a causa de sua extinção, seu titular tem apenas propriedade restrita e resolúvel. O fiduciário não é proprietário pleno, senão titular de um direito sob condição resolutiva (GOMES, 2007, p. 256).
Alienação fiduciária
Agora vamos traduzir o juridiquês: a alienação fiduciária é a modalidade de garantia mais forte do nosso ordenamento jurídico. Diferentemente da hipoteca ou do penhor, em que é concedido um direito real de garantia utilizando bens de propriedade do devedor, na alienação fiduciária nós temos uma transmissão da propriedade do bem dado em garantia.
Isto significa que se você faz um contrato de empréstimo e o banco pede uma alienação fiduciária para garantir o seu adimplemento e você concorda, você acabou de concordar em transmitir seu bem para o banco até o adimplemento da obrigação contratada.
A hipótese do carro com financiamento
E agora, voltamos ao motivo de você estar lendo este texto. Você constatou que seu carro está alienado fiduciariamente e a sensação de descobrir que seu carro na verdade é do banco não deve ser muito boa, mas calma! Apesar de você não ser o proprietário pleno de seu carro, você é o possuidor direto dele e tem vários direitos resguardados em lei.
O Dec. Lei 911/69 regula a alienação fiduciária de bens móveis fungíveis, como seu carro, e é o diploma legal pertinente para interpretar contratos como o seu.
Nos termos do art. 1o do Dec. Lei 911/69, a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.
Traduzindo: o artigo dispõe tudo o que você leu neste texto até o momento.
Caso você não consiga pagar as prestações de seu carro, o banco (credor fiduciário) pode reivindicar a propriedade do carro para pagar a dívida contraída perante ele.
O Decreto Lei 911/69 prevê em seu art. 2o que a consequência para os casos de inadimplemento ou atraso no pagamento das parcelas de uma alienação fiduciária dada em garantia é a venda do bem, visando o adimplemento da obrigação.
Para que essa venda possa ocorrer, é necessário que ocorra a propositura de Ação de busca e apreensão, nos termos do art. 3o do referido diploma legal, que dispõe:
Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.
Isto significa que é fundamental que você pague todas as prestações de seu veículo, sob pena de que você o perca!
Mas é claro que como tudo no ordenamento jurídico brasileiro, existe um procedimento próprio que deve ser seguido para que o carro seja apreendido para quitar a dívida contraída perante o credor fiduciário.
Não é porque você deixou de pagar uma parcela que seu carro será apreendido imediatamente.
A ação de busca e apreensão, apesar de ser rápida, tem um trâmite próprio, e você pode oferecer uma defesa para resguardar sua posse do carro!
Caso um credor fiduciário entre com uma ação de busca e apreensão contra você, é fundamental entrar em contato com um advogado o mais rápido possível para que ele te oriente como proceder e te defenda em juízo, de modo a maximizar suas chances de conservar seu carro e chegar em um consenso com a instituição financeira para que você consiga continuar pagando suas prestações.